Queridas e queridos, segue o terceiro capítulo do artigo de Ana Rita de Paula sobre "Sexualidade e Deficiência" publicado no Boteco da Diversidade, evento realizado no SESC Pompéia em SP.
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A deficiência como experiência subjetiva
Quando falamos em pessoa com deficiência, os principais aspectos que nos vêm à mente dizem respeito às suas necessidades educacionais, à reabilitação e principalmente à profissionalização e colocação no mercado de trabalho, como coroamento de todo um processo de assistência, desde a infância até a vida adulta. Isto porque estamos ainda vivendo em uma cultura marcada pelo capacitismo*2, na qual a produtividade e a utilidade são as medidas para determinar o valor humano. Assim, crianças, idosos e pessoas com deficiência só alcançam valor social quando podem ser úteis socialmente e estarem inseridos no mercado de trabalho.
A sexualidade da pessoa com deficiência é, na maioria das vezes, ignorada ou, quando muito, é vista como um aspecto de importância secundária, tal como o lazer.
Mas, na verdade, a sexualidade é o centro de todo o processo de desenvolvimento, com repercussões na escola, no trabalho, em todas as áreas da existência. Uma pessoa que não consiga vivenciar plenamente a sua sexualidade terá a sua qualidade de vida prejudicada. Porém, já deve ter ficado claro para você, leitor, que não estamos falando do ato sexual genital. Consideramos a sexualidade como motor da vida, como já afirmamos anteriormente, transcrevendo o trecho de Chauí.
Nesta forma de entender, a sexualidade está presente desde o ato da concepção, do nascimento, já se expressando nas primeiras horas de vida. Os pais, quando aguardam o seu bebê, já constroem fantasias e planos para o seu futuro, projetando desejos que irão influenciar o jeito dele ser, viver e expressar a sua sexualidade.
O desenvolvimento sexual, segundo Perske, inicia-se já nessa fase, quando a mãe amamenta e aconchega seu filho, quando o pai o pega ao colo e o abraça, quando começa a ser arreliado e acariciado por irmãos e irmãs. Para que as crianças com deficiência tenham seu início de vida marcado positivamente é crucial que a mãe, mesmo diante de um bebê diferente do esperado (até porque qualquer bebê é necessariamente diferente do idealizado pela cabeça dos pais), estabeleça um vínculo afetivo e se sinta segura e capaz de criá-lo como aos outros, de forma natural e espontânea. Infelizmente, muitos dos profissionais especializados e a sociedade em geral não colaboram para isto e acabam reforçando a ideia de incapacidade e inadequação dos pais.
À medida que o bebê se desenvolve, a partir da auto exploração tátil, começa a estabelecer os limites do próprio corpo e do mundo que o cerca. As crianças com deficiência percorrerão caminhos diferentes nesse processo de reconhecimento de si e do ambiente, em função de não disporem da visão, da audição, ou devido às suas dificuldades motoras ou cognitivas, necessitando de apoio para consegui-lo. Na verdade, é importante lembrarmos que qualquer bebê, quer tenha ou não uma deficiência, constrói um caminho próprio para se desenvolver e necessitará, certamente, de estímulo e apoio neste trabalho.
Mais tarde, ainda segundo Perske, o processo de socialização irá se realizar através do correr, brincar e lutar com amigos e com as vivências de meninas caçoando de meninos e estes mexendo com elas. Já a criança com deficiência, ao ingressar em outros grupos sociais, tais como o de amigos da rua, da escola e outros, defrontar-se-á diretamente com a percepção de suas diferenças.
Consequentemente passará por experiências de aceitação plena ou de rejeição e indiferença por parte de seus pares, o que poderá auxiliá-la ou não no desenvolvimento da autoimagem e da autoestima, aspectos fundamentais para o desenvolvimento de sua sexualidade. Podemos dizer que o fundamental, neste período e, aliás, em todos os momentos da vida, é a convivência da pessoa com deficiência com seus pares e com as demais pessoas. Transitar em vários grupos sociais é receita certa para que o processo de inclusão social ocorra e, as pessoas tenham todo tipo de experiências de socialização e aceitação.
Ao ingressar na adolescência, as pessoas costumam escolher umas às outras, de maneira que cada um encontre aqueles ou aquelas com as quais gostariam de estar sempre junto. Simultaneamente passam a ter sentimentos estranhos nas partes íntimas e a descobrir prazeres que a mão pode produzir, em função das mudanças físicas e hormonais que ocorrem em seu corpo. Esta é uma das fases mais temidas pelos pais de pessoas com deficiência. Alguns tentam negá-la, principalmente quando o filho possui uma deficiência intelectual, infantilizando-o e desejando que a sexualidade desapareça. Outros, ainda, pensam em atitudes drásticas, como a esterilização, temendo não só as atitudes do próprio filho, como possíveis abusos provenientes de outras pessoas.
O estágio de passagem da infância à adolescência é de suma importância, pois pode determinar o ingresso ou não do indivíduo no mundo adulto, de forma responsável, autônoma e independente. A pessoa com deficiência conseguirá viver essa fase plenamente, alcançando o mundo adulto sem maiores problemas se receber os apoios necessários, tanto físicos como emocionais.
Muitas vezes, a deficiência é adquirida justamente nessa fase e na vida adulta, acarretando uma ruptura no ritmo e nos seus projetos de vida. Fica marcada uma divisão entre o antes e o depois, com a ocorrência de uma nostalgia do próprio ser. Podem ocorrer mudanças significativas também nas experiências mais íntimas, de percepção de si mesmo e do próprio corpo. Porém, com o passar do tempo este novo corpo torna-se seu corpo e as experiências de toque corporal, quer por si mesmo, quer por outrem, tornam-se prazerosas.
As deficiências físicas mais frequentemente adquiridas nessas faixas etárias são resultado de acidentes e/ou traumatismos, ocasionando lesão medular, por exemplo. Essas deficiências (Paraplegia e Tetraplegia) são os únicos quadros que geram alterações no desempenho sexual, tanto de homens como de mulheres. Porém, isto dependerá tanto de fatores orgânicos, como a altura da lesão, como de fatores psicológicos e socioculturais, como a autoimagem e as expectativas sociais no que diz respeito ao comportamento de homens e mulheres em relação aos papéis sexuais.
Sabe-se que toda crise pode ser momento de mudanças positivas. Assim, a aquisição deste tipo de deficiência pode se tornar oportunidades para questionar e subverter as regras e modelos de desempenho sexual, tanto para homens, quanto para mulheres, permitindo-se explorar o corpo e suas diversas possibilidades de prazer. Inclusive, se for do desejo do homem com deficiência, atualmente, para os casos de impotência masculina, devido à lesão medular, já existem algumas alternativas que viabilizam o ato de penetração em si e até a possibilidade de gerar filhos.
No caso de deficiências congênitas ou adquiridas na infância, como síndromes e Paralisia Cerebral, nem sempre a questão é de desempenho, mas de encontrar um parceiro/a que o/a aceite, dada a existência, muitas vezes, de deformidades ou, dizendo de forma correta, de corpos com conformações estéticas diversas.
Para aqueles com deficiências com maiores incapacidades e limitações, principalmente casos de pessoas com múltiplas deficiências, torna-se mais difícil que a família e a sociedade percebam, aceitem e viabilizem a expressão de suas necessidades sexuais. Atualmente, em outros países, iniciou-se a discussão da importância de disponibilizar um auxiliar de vida sexual, um agente que ajuda a dupla, ou o conjunto dos parceiros, na realização do ato sexual quando todos possuem limitações motoras significativas. A discussão do sexo apoiado ainda é incipiente em nosso país.
O certo é que a forma de vivenciar a sexualidade, o corpo e a deficiência depende de tudo o que acontece com a pessoa, depende de sua história de vida, das expectativas familiares antes e após seu nascimento, das rejeições, das frustrações e das relações bem-sucedidas. Neste processo de conhecimento, estão incluídas experiências imaginárias e reais.
Acreditamos que pessoas com deficiência, provenientes de famílias e comunidades que lhes ofereçam os apoios necessários ao seu desenvolvimento global, desde a infância, possam tornar-se pessoas capazes de realizar-se sexualmente e de, se assim o desejarem, constituir famílias.
De qualquer forma, é importante que as pessoas com deficiência e suas famílias busquem informações e orientações que necessitem no que diz respeito à sexualidade e, que os profissionais se preparem para realizar um trabalho, tanto com os pais, como com os próprios indivíduos com deficiência, propiciando-lhes um espaço de reflexão, de autoconhecimento e de compreensão de sua sexualidade, em um diálogo ético, franco e de respeito.
2* O termo capacitismo é tradução de “ableism”, forma surgida em países de língua inglesa. Refere-se à discriminação, preconceitos e opressão contra pessoas com qualquer tipo de deficiência, advindos da noção de que pessoas com deficiência são inferiores às pessoas sem deficiência, na medida em que, supostamente, não teriam as mesmas capacidades das demais pessoas, em uma sociedade que valoriza o homem por sua condição de produtividade e de utilidade social.
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Os primeiros capítulos deste artigo estão nos links:
Capítulo 1:
https://coletivomulheresinclusao.blogspot.com.br/2017/06/boteco-da-diversidade-sexualidade-e.html
Capítulo 2:
https://coletivomulheresinclusao.blogspot.com.br/2017/06/boteco-da-diversidade-sexualidade-e_28.html
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Capítulo 1:
https://coletivomulheresinclusao.blogspot.com.br/2017/06/boteco-da-diversidade-sexualidade-e.html
Capítulo 2:
https://coletivomulheresinclusao.blogspot.com.br/2017/06/boteco-da-diversidade-sexualidade-e_28.html