Mulheres com Deficiência pela Inclusão Já!

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quinta-feira, 29 de junho de 2017

BOTECO DA DIVERSIDADE: SEXUALIDADE E DEFICIÊNCIA - Capítulo 3

Queridas e queridos, segue o terceiro capítulo do artigo de Ana Rita de Paula sobre "Sexualidade e Deficiência" publicado no Boteco da Diversidade, evento realizado no SESC Pompéia em SP.

Leiam, comentem e compartilhem!
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A deficiência como experiência subjetiva
Quando falamos em pessoa com deficiência, os principais aspectos que nos vêm à mente dizem respeito às suas necessidades educacionais, à reabilitação e principalmente à profissionalização e colocação no mercado de trabalho, como coroamento de todo um processo de assistência, desde a infância até a vida adulta. Isto porque estamos ainda vivendo em uma cultura marcada pelo capacitismo*2, na qual a produtividade e a utilidade são as medidas para determinar o valor humano. Assim, crianças, idosos e pessoas com deficiência só alcançam valor social quando podem ser úteis socialmente e estarem inseridos no mercado de trabalho.

A sexualidade da pessoa com deficiência é, na maioria das vezes, ignorada ou, quando muito, é vista como um aspecto de importância secundária, tal como o lazer.

Mas, na verdade, a sexualidade é o centro de todo o processo de desenvolvimento, com repercussões na escola, no trabalho, em todas as áreas da existência. Uma pessoa que não consiga vivenciar plenamente a sua sexualidade terá a sua qualidade de vida prejudicada. Porém, já deve ter ficado claro para você, leitor, que não estamos falando do ato sexual genital. Consideramos a sexualidade como motor da vida, como já afirmamos anteriormente, transcrevendo o trecho de Chauí.

Nesta forma de entender, a sexualidade está presente desde o ato da concepção, do nascimento, já se expressando nas primeiras horas de vida. Os pais, quando aguardam o seu bebê, já constroem fantasias e planos para o seu futuro, projetando desejos que irão influenciar o jeito dele ser, viver e expressar a sua sexualidade.

O desenvolvimento sexual, segundo Perske, inicia-se já nessa fase, quando a mãe amamenta e aconchega seu filho, quando o pai o pega ao colo e o abraça, quando começa a ser arreliado e acariciado por irmãos e irmãs. Para que as crianças com deficiência tenham seu início de vida marcado positivamente é crucial que a mãe, mesmo diante de um bebê diferente do esperado (até porque qualquer bebê é necessariamente diferente do idealizado pela cabeça dos pais), estabeleça um vínculo afetivo e se sinta segura e capaz de criá-lo como aos outros, de forma natural e espontânea. Infelizmente, muitos dos profissionais especializados e a sociedade em geral não colaboram para isto e acabam reforçando a ideia de incapacidade e inadequação dos pais.

À medida que o bebê se desenvolve, a partir da auto exploração tátil, começa a estabelecer os limites do próprio corpo e do mundo que o cerca. As crianças com deficiência percorrerão caminhos diferentes nesse processo de reconhecimento de si e do ambiente, em função de não disporem da visão, da audição, ou devido às suas dificuldades motoras ou cognitivas, necessitando de apoio para consegui-lo. Na verdade, é importante lembrarmos que qualquer bebê, quer tenha ou não uma deficiência, constrói um caminho próprio para se desenvolver e necessitará, certamente, de estímulo e apoio neste trabalho.

Mais tarde, ainda segundo Perske, o processo de socialização irá se realizar através do correr, brincar e lutar com amigos e com as vivências de meninas caçoando de meninos e estes mexendo com elas. Já a criança com deficiência, ao ingressar em outros grupos sociais, tais como o de amigos da rua, da escola e outros, defrontar-se-á diretamente com a percepção de suas diferenças.

Consequentemente passará por experiências de aceitação plena ou de rejeição e indiferença por parte de seus pares, o que poderá auxiliá-la ou não no desenvolvimento da autoimagem e da autoestima, aspectos fundamentais para o desenvolvimento de sua sexualidade. Podemos dizer que o fundamental, neste período e, aliás, em todos os momentos da vida, é a convivência da pessoa com deficiência com seus pares e com as demais pessoas. Transitar em vários grupos sociais é receita certa para que o processo de inclusão social ocorra e, as pessoas tenham todo tipo de experiências de socialização e aceitação.

Ao ingressar na adolescência, as pessoas costumam escolher umas às outras, de maneira que cada um encontre aqueles ou aquelas com as quais gostariam de estar sempre junto. Simultaneamente passam a ter sentimentos estranhos nas partes íntimas e a descobrir prazeres que a mão pode produzir, em função das mudanças físicas e hormonais que ocorrem em seu corpo. Esta é uma das fases mais temidas pelos pais de pessoas com deficiência. Alguns tentam negá-la, principalmente quando o filho possui uma deficiência intelectual, infantilizando-o e desejando que a sexualidade desapareça. Outros, ainda, pensam em atitudes drásticas, como a esterilização, temendo não só as atitudes do próprio filho, como possíveis abusos provenientes de outras pessoas.

O estágio de passagem da infância à adolescência é de suma importância, pois pode determinar o ingresso ou não do indivíduo no mundo adulto, de forma responsável, autônoma e independente. A pessoa com deficiência conseguirá viver essa fase plenamente, alcançando o mundo adulto sem maiores problemas se receber os apoios necessários, tanto físicos como emocionais.

Muitas vezes, a deficiência é adquirida justamente nessa fase e na vida adulta, acarretando uma ruptura no ritmo e nos seus projetos de vida. Fica marcada uma divisão entre o antes e o depois, com a ocorrência de uma nostalgia do próprio ser. Podem ocorrer mudanças significativas também nas experiências mais íntimas, de percepção de si mesmo e do próprio corpo. Porém, com o passar do tempo este novo corpo torna-se seu corpo e as experiências de toque corporal, quer por si mesmo, quer por outrem, tornam-se prazerosas.

As deficiências físicas mais frequentemente adquiridas nessas faixas etárias são resultado de acidentes e/ou traumatismos, ocasionando lesão medular, por exemplo. Essas deficiências (Paraplegia e Tetraplegia) são os únicos quadros que geram alterações no desempenho sexual, tanto de homens como de mulheres. Porém, isto dependerá tanto de fatores orgânicos, como a altura da lesão, como de fatores psicológicos e socioculturais, como a autoimagem e as expectativas sociais no que diz respeito ao comportamento de homens e mulheres em relação aos papéis sexuais.

Sabe-se que toda crise pode ser momento de mudanças positivas. Assim, a aquisição deste tipo de deficiência pode se tornar oportunidades para questionar e subverter as regras e modelos de desempenho sexual, tanto para homens, quanto para mulheres, permitindo-se explorar o corpo e suas diversas possibilidades de prazer. Inclusive, se for do desejo do homem com deficiência, atualmente, para os casos de impotência masculina, devido à lesão medular, já existem algumas alternativas que viabilizam o ato de penetração em si e até a possibilidade de gerar filhos.

No caso de deficiências congênitas ou adquiridas na infância, como síndromes e Paralisia Cerebral, nem sempre a questão é de desempenho, mas de encontrar um parceiro/a que o/a aceite, dada a existência, muitas vezes, de deformidades ou, dizendo de forma correta, de corpos com conformações estéticas diversas.

Para aqueles com deficiências com maiores incapacidades e limitações, principalmente casos de pessoas com múltiplas deficiências, torna-se mais difícil que a família e a sociedade percebam, aceitem e viabilizem a expressão de suas necessidades sexuais. Atualmente, em outros países, iniciou-se a discussão da importância de disponibilizar um auxiliar de vida sexual, um agente que ajuda a dupla, ou o conjunto dos parceiros, na realização do ato sexual quando todos possuem limitações motoras significativas. A discussão do sexo apoiado ainda é incipiente em nosso país.

O certo é que a forma de vivenciar a sexualidade, o corpo e a deficiência depende de tudo o que acontece com a pessoa, depende de sua história de vida, das expectativas familiares antes e após seu nascimento, das rejeições, das frustrações e das relações bem-sucedidas. Neste processo de conhecimento, estão incluídas experiências imaginárias e reais.

Acreditamos que pessoas com deficiência, provenientes de famílias e comunidades que lhes ofereçam os apoios necessários ao seu desenvolvimento global, desde a infância, possam tornar-se pessoas capazes de realizar-se sexualmente e de, se assim o desejarem, constituir famílias.


De qualquer forma, é importante que as pessoas com deficiência e suas famílias busquem informações e orientações que necessitem no que diz respeito à sexualidade e, que os profissionais se preparem para realizar um trabalho, tanto com os pais, como com os próprios indivíduos com deficiência, propiciando-lhes um espaço de reflexão, de autoconhecimento e de compreensão de sua sexualidade, em um diálogo ético, franco e de respeito.


2* O termo capacitismo é tradução de “ableism”, forma surgida em países de língua inglesa. Refere-se à discriminação, preconceitos e opressão contra pessoas com  qualquer tipo de deficiência, advindos da noção de que pessoas com deficiência são inferiores às pessoas sem deficiência, na medida em que, supostamente, não teriam as mesmas capacidades das demais pessoas, em uma sociedade que valoriza o homem por sua condição de produtividade e de utilidade social.

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Os primeiros capítulos deste artigo estão nos links:

Capítulo 1:

https://coletivomulheresinclusao.blogspot.com.br/2017/06/boteco-da-diversidade-sexualidade-e.html

Capítulo 2:

https://coletivomulheresinclusao.blogspot.com.br/2017/06/boteco-da-diversidade-sexualidade-e_28.html

quarta-feira, 28 de junho de 2017

BOTECO DA DIVERSIDADE: SEXUALIDADE E DEFICIÊNCIA - Capítulo 2

Queridas e queridos, segue o segundo capítulo do texto da Ana Rita de Paula sobre Sexualidade e Deficiência. 

Continuem acompanhando suas ótimas reflexões, comentem e compartilhem! 

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Diversidade corporal
Ana Rita - 2016
Nós somos o nosso corpo.
O meu corpo sou eu.
Você me vê porque habito um corpo.
Eu me relaciono com você e com o mundo através do meu corpo.
Se temos direito à diversidade, temos direito de nos expressar através de nossos diferentes corpos.
Ao meu corpo não falta nada,
Não quero retirar nada do meu corpo.
Sou reconhecida, aprovada ou não, pelo meu corpo.
Meu corpo guarda a memória de momentos felizes e encontros não tão felizes.
Meu corpo guarda a nostalgia do que desejo e não posso alcançar.
Meu corpo comemora tudo que consegui atingir.
Meu corpo é sábio e burro ao mesmo tempo.
Eu e meu corpo não queremos e não podemos ser autossuficientes.
Meu corpo pede e anseia pelo seu toque.
Meu corpo teme o seu não e sua agressão.
Nossos corpos foram considerados máquinas, naturalmente ajustadas como relógios.
Descobriram o fluxo do sangue e o funcionamento orgânico dos nossos corpos.
Hoje, nossos corpos são integrados e integram partes mecânicas e eletrônicas.
Nossos corpos, hoje, rompem a barreira do humano e do cibernético,
Experimentando uma nova estética.
No entanto, é mais do que necessário, hoje, adotarmos uma nova ética
Para nos relacionarmos com nossos corpos e com o corpo do Outro.
Essa ética deve buscar algo para além da perfeição e da eugenia.
Essa ética deve buscar reconhecer e valorizar a beleza que reside na diversidade.
Vivemos na pós-modernidade.
Estamos abandonando regras fixas, parâmetros indiscutíveis e teorias que desejam explicar tudo.
Estamos perdendo um chão falsamente construído e nos lançando em incógnitas infinitas.
Assim, é natural e desejável que abandonemos a ideia do Homem Vitruviano,
Do ideal do homem proporcionalmente construído e controlado.
Há diversos corpos buscando reconhecimento,
Há diversos corpos buscando dignidade,
Há diversos corpos buscando o direito ao prazer.
A energia poderosa da vida, também chamada sexualidade,
Possui a capacidade de romper barreiras, de proporcionar encontros inusitados,
Gerar novos corpos que também tem o direito ao prazer e à diversão.
E o direito à diversexualidade!


Todos somos seres sexuais
A sexualidade é um fator essencial da natureza humana e não é possível diminuí-la, negá-la ou fazê-la desaparecer. Todos nós somos seres sexuais e, obviamente, as pessoas com deficiência também o são. Entretanto, há apenas alguns anos atrás, nem se admitia que essas pessoas tivessem necessidades e direitos a vivenciar e expressar sua sexualidade. Hoje é incontestável que todas as pessoas com deficiência têm o direito a uma vida afetiva e sexual plena.

A partir do movimento das pessoas com deficiência por seus direitos, ao longo das décadas de 1960 e 1980, a sexualidade da pessoa com deficiência começa a ser discutida. O interesse por esta questão inicia-se com a constatação de que a sexualidade é um direito inerente à condição humana, paralelamente a estudos sobre autoimagem. Todos esses estudos reconhecem que a sociedade crê haver somente duas alternativas possíveis: a deficiência acarretaria a impossibilidade do exercício da sexualidade ou a condição da deficiência não implicaria em nenhuma alteração na vida sexual.  

Ambas as colocações são falsas, pois uma nega a sexualidade e a outra, a deficiência, ignorando a articulação destes aspectos no que diz respeito à vivência individual e mesmo das consequências no plano social. No início dos anos 80, a sexualidade destas pessoas é abordada a partir de outras concepções, que não o de uma mera necessidade orgânica. A adolescência, o desempenho de papéis sexuais, a gravidez e o planejamento familiar para pessoas com deficiência, tornam-se temas de reflexão. Afirmam PAULA, REGEN E LOPES (2005, p.41):

“Estes estudos já revelam uma tendência, embora tênue, de elaborar uma análise mais psicossocial do que meramente orgânica e genital. No entanto, como o enfoque central é desenvolver técnicas de intervenção clínica e de aconselhamento visando ao ajustamento social, ainda persiste o viés de patologizar a sexualidade e a deficiência”.

O atendimento às pessoas com deficiência está se afastando de uma postura assistencialista e segregacionista, segundo GLAT (2007), voltando-se para uma abordagem sócio educacional, com ênfase na autonomia e inclusão social. A consideração dos direitos sexuais e reprodutivos como Direitos Humanos, a partir de 1994, reforçou a tendência de uma compreensão mais ampla deste campo, estendendo esses direitos para as pessoas com deficiência.

A preocupação crescente com a humanização dos serviços de saúde vem ao encontro da garantia desses direitos. Podemos entender humanização como a capacidade, tanto dos profissionais de saúde como dos usuários do SUS, de estabelecerem um encontro ético, no qual o diálogo, ou seja, a capacidade de ouvir empaticamente o outro esteja presente.

No caso das demandas relacionadas à sexualidade ou às questões de gênero, ouvir empaticamente o usuário do Sistema de Saúde implica em desenvolver um olhar destituído de preconceitos. Muitas vezes, por exemplo, a ideia de incompatibilidade entre desejo sexual e deficiência física, pode se antepor a escuta da fala do outro.

Um episódio ocorrido com uma mulher com deficiência exemplifica esta situação. Em uma consulta com um médico de família, uma mulher com deficiência solicita a realização do exame Papanicolau e lhe é dito que, em seu caso, não é necessário realizar o exame porque a incidência de câncer de colo de útero está ligada à vida sexual ativa. A suposição de que aquela usuária, em função da deficiência, não tinha vida sexual, impediu o profissional de reconhece-la como mulher e, mesmo, como pessoa.

No intuito de responder a demanda de definição de diretrizes e orientação aos profissionais do SUS, o Ministério da Saúde realizou diversos encontros e seminários, culminando com a publicação do documento “Direitos Sexuais e Reprodutivos na Integralidade da Atenção à Saúde de Pessoas com Deficiência” em 2009, contendo recomendações para os gestores do SUS operacionalizarem as ações propostas pela Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência neste campo.

Outros documentos nacionais e internacionais foram surgindo ao longo do tempo, reafirmando este tema como pertencente ao campo dos direitos humanos. A Convenção da ONU, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Governo brasileiro em 2008, além de  reiterar a necessidade do reconhecimento da importância de abordar o tema “sexualidade” nos seus múltiplos aspectos: direito ao exercício da sexualidade com segurança, dignidade e direito à reprodução, prevenção e promoção da saúde e a urgência de ações de prevenção contra a violência e abuso sexual, diagnóstico e tratamento das DST/aids que contemplem as especificidades da pessoa com deficiência, explicita a situação de maior vulnerabilidade e de desrespeito para com os  direitos humanos, sociais, econômicos e políticos  das  crianças e particularmente das mulheres com deficiência.

A mais recente legislação no campo da deficiência no Brasil é a Lei Brasileira de Inclusão - LBI (2016) e, este instrumento legal também trata de aspectos importantes para a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das pessoas com deficiência, impedindo, por exemplo, que mulheres com deficiência sofram qualquer procedimento médico ou cirúrgico sem seu consentimento com o intuito de restringir ou impossibilitar a gestação.


Tanto a Convenção como a LBI são a tradução do pensamento mais atual na área da defesa dos direitos das pessoas com deficiência, a tal ponto que convido você, leitor, a dar pelo menos uma olhadinha nestes documentos. Mas, se você estiver envolvido com a questão da deficiência, quer pessoalmente, quer profissionalmente, trata-se de uma leitura obrigatória.

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O primeiro capítulo deste artigo está no link: 

https://coletivomulheresinclusao.blogspot.com.br/2017/06/boteco-da-diversidade-sexualidade-e.html

terça-feira, 27 de junho de 2017

BOTECO DA DIVERSIDADE: SEXUALIDADE E DEFICIÊNCIA - Capítulo 1

Queridas e queridos, vamos publicar - em capítulos - um importante artigo sobre sexualidade e deficiência escrito por Ana Rita de Paula para o grande encontro realizado no SESC Pompéia em que Leandra Migotto Certeza esteve presente. 

Aproveitem a ótima reflexão de aspectos fundamentais sobre o assunto escrito tão bem de forma clara e certeira! Compartilhem e comentem!  

E aguardem a cobertura jornalística sobre o Boteco da Diversidade aqui em nosso blog... 


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Por Ana Rita de Paula em 16/05/2017


“Assim que quebrei o pescoço, uma de minhas maiores preocupações era a de não poder fazer mais sexo. Aliás, não voltar a ter prazer é um assunto que aflige muita gente que se depara com uma deficiência. Comigo não foi diferente. Por isso, na dúvida, quis tirar a prova rápido.  Fiz sexo na UTI”.

“A maioria dos meus namorados infelizmente eram cegos (risos). Videntes querem proteger demais e não gostam muito de sair com a gente em público, mas um namorado vidente pode me proporcionar muito mais, podemos passear de carro, sair mesmo que esteja chovendo, é a mais pura realidade”.
“Calma gente, não está doendo, está tudo bem”. Era dessa forma que M. G. A., que tem síndrome de Down, tentava acalmar os pais e os dois irmãos ao seguir para uma maternidade, onde daria à luz a sua primeira filha”,

“Eu, um menino surdo, tinha um primo que ficava junto comigo e que acabou tendo relação sexual comigo e eu fui criado junto com ele, mas eu não entendia nada daquilo e desde criança esse meu primo tinha relação sexual comigo. Eu fui entendendo...Eu gostei da relação homossexual. Desde o início eu gostei muito e eu fui percebendo o jeito feminino. Eu fui querendo tanto ser uma menina, eu sentia esse desejo, esse sonho de ser mulher, sempre eu tive esse desejo feminino”.

Certamente, você leitor, já se indagou se as pessoas com deficiência física têm desejo sexual e se fazem sexo. Como as pessoas cegas namoram. Qual o ideal de mulher que os homens cegos têm. É razoável e prudente que uma mulher com deficiência intelectual seja mãe? As pessoas com deficiência intelectual podem ter filhos normais? E, há pessoas com deficiência homossexuais?

Apesar de termos milhões de perguntas sobre deficiência, sexualidade e sobre sexualidade e deficiência estes temas são muito pouco discutidos, sendo desconfortável, ainda hoje, falar sobre isto.

Para compreendermos a articulação entre os temas da deficiência e da sexualidade precisamos partir do impacto que uma deficiência impõe à representação por parte da sociedade sobre as pessoas que possuem incapacidades. Muitas vezes, a própria ideia de ser pessoa é colocada em dúvida nestes casos.Conforme salienta Skliar (2010), “ser ouvinte é ser falante e é também ser branco, homem, profissional, letrado, civilizado. Ser surdo, portanto, significa não falar – surdo mudo – e não ser humano” (p. 21).

A deficiência (com qualquer tipo de incapacidade) é mais uma característica utilizada para estabelecer desigualdades entre as pessoas “diferentes” e as pessoas “normais”, idealizadas, com um jeito de ser que se coaduna com um padrão de homem ideal. Na verdade, padrão este, inexistente, construído para alicerçar relações de poder.

Mas, efetivamente, quais as características que nos tornam humanos? Embora existam diversas respostas para esta pergunta, três características aparecem sempre quando nos questionamos sobre a natureza humana.

Nós humanos somos seres históricos, isto é, alteramos a natureza e nosso contexto de vida, mudando a nós mesmos neste processo, diferentemente dos animais que repetem indefinidamente os mesmos comportamentos, em uma relação fixa de dependência com o meio ambiente e seus instintos.

Para viver essa realidade, o fato de termos memória é fundamental. A memória é a capacidade de lembrar daquilo que tem significado especial para nós e nos permite aprender e evoluir. Por sua vez, a linguagem é peça primordial para a memória. É através da linguagem que nomeamos as coisas, emprestando significado a tudo que está ao nosso redor, no nosso exterior e, também às coisas que habitam dentro de nós. Entre estas coisas, o desejo, intimamente ligado à sexualidade, é mais uma característica que nos difere dos animais. O instinto dos animais é predeterminado e imutável, o desejo humano é plástico. Ele está na base do nosso desenvolvimento psíquico, emocional, cultural, social e político.

No dizer da filósofa brasileira Marilena Chauí,

“...a sexualidade não se confunde com um instinto, nem com um objeto (parceiro), nem com um objetivo (união dos órgãos genitais no coito). Ela é polimorfa, polivalente, ultrapassa a necessidade fisiológica e tem a ver com a simbolização do desejo. Não se reduz aos órgãos genitais (ainda que esses possam ser privilegiados na sexualidade adulta) porque qualquer região do corpo é suscetível de prazer sexual, desde que tenha sido investida de erotismo na vida de alguém, e porque a satisfação sexual pode ser alcançada sem a união genital” (Chauí, 1984, p.15).

Corpos deficientes, desviantes, diversos e desafiadores

É importante lembrar que o corpo é o espaço comum da vivência da sexualidade e da deficiência simultaneamente.Nós conhecemos nosso corpo ao andar, fazer amor, ao nos lavar, do mesmo modo que o conhecemos através da dor, da doença e das emoções.

O Corpo é o que possuímos de mais privado e simultaneamente é o que temos de mais público.É através do corpo que somos percebidos, aprovados ou reprovados pelos outros. Ele é mais do que um feixe de ossos e músculos e, embora, seja no corpo material que sentimos prazer, a sexualidade se constrói e se expressa no corpo simbólico.O corpo simbólico é a nossa experiência cotidiana de existir.

Essa experiência corporal faz parte de nossa identidade/subjetividade e é influenciada pela cultura, ou seja, depende do lugar onde vivemos e dos comportamentos, valores e regras que compartilhamos. Assim, é muito diferente a experiência de ser mulher no Brasil e no Oriente Médio, por exemplo. Da mesma forma, experimentamos situações de maior capacidade ou incapacidade em países mais desenvolvidos, nos quais a questão da acessibilidade está melhor resolvida, do que em países mais pobres onde a questão da sobrevivência é o tema mais candente para as pessoas com deficiência.

O corpo, tal como a deficiência também é histórico, altera-se no tempo. Ser deficiente na Idade Média implicava em ser alvo de torturas públicas por apresentar sinais de um corpo que expressava o pecado da carne. A deficiência era explicada como determinação da vontade divina ou por influência demoníaca. Atualmente, ainda que estejamos longe de uma sociedade inclusiva, tentamos disseminar a ideia de que a deficiência é uma expressão da diversidade humana e, como tal, não deve ser encarada como infortúnio individual.

Trata-se de uma condição social, tal como a condição feminina ou a condição étnica racial. Desse modo, podemos afirmar que o fato do organismo apresentar anomalias ou disfunções não é justificativa para a discriminação ou o preconceito, base das restrições de participação social e política das pessoas com deficiência. Do mesmo modo que não podemos atribuir à presença de genitais e órgãos reprodutivos femininos o fato das mulheres, no Brasil e na maioria dos países, ganharem menos do que os homens em funções idênticas no trabalho, podemos aplicar este raciocínio à condição da deficiência. Portanto, é possível afirmar que o corpo e a sexualidade são dimensões políticas e têm a força potencial de transformar indivíduos, grupos e sociedades.

A construção de qualquer condição social objetiva a perpetuação de relações de poder assimétricas, na medida em que considera “anormal”, desqualificando aquele que foge do padrão e, justificando, assim, os tratamentos desiguais e injustos. Esta afirmação nos leva a concluir que existe um ”chão” comum a todas as pessoas que pertencem aos diferentes grupos minoritários. Falar de transexuais, negros, mulheres é tocar neste solo comum.

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Continuem lendo este artigo nos links abaixo:

Capítulo 2:

https://coletivomulheresinclusao.blogspot.com.br/2017/06/boteco-da-diversidade-sexualidade-e_28.html