Queridas e queridos, segue o quarto capítulo do artigo de Ana Rita de Paula sobre "Sexualidade e Deficiência" publicado no Boteco da Diversidade, evento realizado no SESC Pompéia em SP.
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A mobilização e organização das pessoas com deficiência e a sexualidade
Há pelo menos 30 anos, os movimentos de pessoas com deficiência discutem a questão da sexualidade. Mas, no início, essas discussões eram tímidas e se focavam na capacidade, particularmente de homens com lesão medular, no desempenho sexual.
Esta restrição ocorria principalmente em função da concepção de corpo, de deficiência e de sexualidade dominantes. Estas concepções estavam e, ainda estão, marcadas por uma visão biológica e organicista, com o predomínio do modelo médico da deficiência.
O modelo médico reconhece na lesão, na doença ou na limitação do organismo, quer física, quer intelectual, quer sensorial, a causa primeira da desigualdade social e das desvantagens vivenciadas pelas pessoas que as possuem. Além de colocar em segundo plano e de forma complementar a questão social, considera o corpo apenas enquanto organismo biológico.
Esta visão nasceu em um momento histórico no qual a ciência tornava-se explicação dominante do mundo, retirando o poder das causas atribuídas à vontade de Deus. Isto ocorreu no início da Idade Moderna, com o surgimento do humanismo, doutrina que colocava o homem como centro do universo e o mundo natural como o único campo de explicação dos fenômenos e dos problemas humanos.
Assim, a deficiência deixava de ser vista a partir de argumentações metafísicas e passava a ser considerada como consequência de doenças e/ou acidentes, passíveis de prevenção e tratamento médico. Mais tarde, surgem as propostas de intervenção de educação especial, visando a estimular o desenvolvimento das pessoas que nascessem com limitações, principalmente, intelectuais e sensoriais.
O corpo, a partir da Modernidade, começa a ser considerado como semelhante a uma máquina, na qual as peças se encaixam e produzem movimento. Posterior à visão do corpo-máquina, surge a ideia do corpo-organismo, um conjunto de órgãos que interagem, de modo sistêmico, internamente e com os estímulos do ambiente externo, propiciando as funções básicas da vida. A sexualidade, nesta concepção, é entendida como função e como comportamento do organismo, sendo ambos vistos unicamente como dimensões da biologia e da natureza.
Desta forma, por se tratar de um organismo “danificado”, a dimensão sexual do corpo deficiente é encarada como inexistente, no caso das deficiências físicas e sensoriais, ou exacerbada, no caso de uma mente “sem razão” e competência para controlar os impulsos da carne, como ocorreria hipoteticamente na deficiência intelectual.
Portanto, a questão da articulação entre deficiência e sexualidade fica restrita a estudos sobre as possibilidades ou não de organismos com deficiência desempenharem o ato sexual de modo considerado normal e/ou satisfatório. Os aspectos emocionais e sociais são encarados como decorrência dos fatores biológicos. Consequentemente, a maioria dos estudos se centrava nas possibilidades e nas alternativas para o desempenho sexual de homens com lesão medular, uma vez que, como já dissemos, é o único quadro de deficiência que pode afetar a ereção masculina e a lubrificação genital feminina.
Entretanto, não vamos nos iludir! O estudo de forma privilegiada da condição masculina de lesados medulares está preso a questões do privilégio do gênero masculino e a aspectos de classe social, uma vez que, as pessoas com lesão medular pertencem a classe média e classe média alta, na nossa sociedade.
A partir de meados do século XX ocorreram fatos que impactaram diretamente as noções sobre deficiência e sobre a prática sexual. Entre estes fatos, estão as duas guerras mundiais que produziram muitas pessoas com deficiência e os movimentos sociais de luta pelos direitos civis, pelos direitos dos negros que, juntamente com o movimento hippie e a organização feminista afrouxaram a moral e permitiram a dissociação entre sexo e procriação.
No bojo de todas essas transformações, cresceu a organização das pessoas com deficiência e disseminou-se o modelo social da deficiência que insere este tema no campo dos direitos humanos.
Segundo a antropóloga brasileira, Débora Diniz, no modelo social:
“(...) deficiência não é mais uma simples expressão de uma lesão que impõe restrições à participação social de uma pessoa. Deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente. Assim como outras formas de opressão pelo corpo, como o sexismo ou o racismo, os estudos sobre deficiência descortinaram uma das ideologias mais opressoras de nossa vida social: a que humilha e segrega o corpo deficiente”. (DINIZ, D. O que é deficiência)
A partir desta nova forma de encarar a deficiência como um fenômeno multidimensional seus aspectos sociais políticos e históricos ganharam espaço, tanto na academia, como, nas discussões do movimento social.
Só, mais recentemente, este movimento social começou a discutir sexualidade das pessoas com deficiência, sem as sutilezas de uma linguagem encobridora do caráter carnal do sexo, também aplicado ao caso destas pessoas. Não se trata de discutir sexo de anjos, nem tampouco de proclamar o sexo como meramente um direito. Trata-se de desnudar o fato de que as pessoas com deficiência fazem sexo e o fazem vivendo o prazer de infinitas maneiras, apesar das dificuldades sociais de serem escolhidos como parceiros, no jogo do sexo.
Em Barcelona nasceu um slogan acompanhado de uma campanha pelo reconhecimento de que as pessoas com deficiência, ou melhor dizendo, como eles nomeiam, pessoas com diversidade funcional, são seres sexuais. Yes, we fuck pretende discutir a vida sexual das pessoas com deficiência, de modo explícito, franco e sem subterfúgios.
Nós, no Brasil, estamos formando um coletivo em articulação com o movimento europeu. Se você quiser participar das discussões ou simplesmente conhecer melhor essa proposta, acesse o grupo Yes, we fuck.br no Facebook.
Tempo de inclusão
Entre as principais conquistas do movimento reivindicatório das pessoas com deficiência está o reconhecimento, por parte da sociedade, de que estas pessoas são os legítimos interlocutores para o diálogo e a discussão acerca de suas necessidades e para a definição de prioridades e de políticas públicas a serem adotadas neste campo. Isto fez com que antigos “representantes” das pessoas com deficiência, como os médicos e demais profissionais de reabilitação, além dos familiares, fossem substituídos pelos líderes do movimento. Outra conquista fundamental foi o estabelecimento do princípio de inclusão social.
Dentro deste princípio, não é mais a pessoa com deficiência que deve se ajustar à sociedade, tal como ela está, e sim, é a sociedade que deve adaptar-se e prover todos os meios necessários para atender as necessidades de toda e qualquer pessoa, incluindo as pessoas com deficiência. A partir do modelo de sociedade inclusiva, todos os sistemas sociais têm que reconhecer o valor da diversidade humana e criar condições para atender a todos, considerando suas diferentes necessidades.
À vista disto, a sexualidade das pessoas com deficiência passa a ser encarada dentro de uma abordagem psicossocial, com ênfase na vida sexual satisfatória, com afeto e autonomia.
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Capítulo 3: